A filosofia do dever

O dever raramente é doce. Só quando o amor lubrifica as rodas é que ele corre mansamente. De outra maneira, a fricção é continua. Como poderiam os pais, de outra forma, cumprir seus deveres para com os filhos, os maridos para com suas mulheres, e vice-versa? Não encontramos casos de fricção todos os dias em nossas vidas?

O dever só é doce através do amor, e o amor só brilha em liberdade. Ainda assim, é liberdade o ser escravo dos sentidos, da cólera, dos ciúmes, e de uma centena de outras coisas mesquinhas que devem ocorrer todos os dias na existência humana? Em todas essas pequenas rudezas com que nos deparamos na vida, a expressão mais alta de liberdade é suportar.

Mulheres que são escravas de seus próprios temperamentos irritáveis, ciumentos, costumam culpar seus maridos e afirmar sua própria "liberdade" – conforme pensam – sem saber que assim provam, apenas, que são escravas. O mesmo se dá com os maridos que se queixam eternamente de suas esposas.

A única forma de subir é cumprir o dever que nos está próximo, e assim reunir forças, subindo até alcançar o mais alto estágio.


* * *

Um jovem saniâsin meteu-se numa floresta e ali meditava, fazia seu culto, e praticava o Yoga, por muito tempo. Depois de anos de duro trabalho e prática, estava ele um dia sentado sob uma árvore, quando algumas folhas secas lhe caíram na cabeça. Olhou para cima e viu um corvo e um grou brigando no topo de uma árvore, o que o levou a encolerizar-se muito.

E disse:

- O Quê? Ousais atirar essas folhas mortas sobre minha cabeça?

Como, ao dizer essas palavras, olhava para as aves com muita ira, uma faísca saltou – que tal era o poder do yogue – e queimou-as, reduzindo-as a cinzas. O homem ficou muito contente, quase contente demais, ao verificar o desenvolvimento de seu poder. Podia queimar um corvo e um grou só com um olhar!

Depois de algum tempo, precisou ir à cidade mendigar o seu pão. Chegando a uma porta, parou ali e disse:

- Mãe, dá-me comida!

Uma voz veio de lá de dentro:

- Espera um pouco, meu filho.

O jovem pensou:

- Mulher miserável! Como ousa fazer-me esperar? Ignora o meu poder!

Enquanto estava assim pensando, a voz se fez ouvir de novo:

- Rapaz, não penses tanto sobre ti mesmo; aqui não há corvos nem grous.

Ele ficou atônito, e teve de esperar. Por fim, a mulher chegou e o jovem caiu a seus pés, dizendo:

- Mãe, como sabias disso?

- Meu rapaz, eu nada sei de teu Yoga e de tuas práticas. Sou mulher comum, cotidiana. Fiz-te esperar porque meu marido está doente e eu estava tratando dele. Toda a minha vida lutei para cumprir meu dever. Quando era solteira, cumpri meu dever para com meus pais; agora que sou casada, cumpro meu dever para com meu marido. Esse é todo o Yoga que pratico. Mas, cumprindo meu dever, fui iluminada, e assim pude ler os teus pensamentos e saber o que fizeste na floresta. Se queres aprender algo superior a isto, vai ao mercado de tal e tal cidade e ali encontrarás um vyadha (alguém pertencente a mais baixa casta na Índia, que inclui os caçadores e os açougueiros), e ele te dirá algo que te alegrará de aprenderes.

O saniâsin pensou:

- Por que iria eu a essa cidade, à procura de um vyadha?

Mas, depois do que vira, sua mente se abriu um pouco, e ele foi. Ao chegar à cidade, encontrou o mercado e viu, a certa distância, um grande e gordo vyadha, cortando carne com uma grande faca, e falando e negociando com diferentes pessoas. O jovem disse consigo:

- Valha-me Deus! É este o homem de quem preciso aprender? Se a alguma coisa ele se parece, é com a encarnação do demônio!

Nesse ínterim o homem, levantando os olhos disse:

- Ó Swami, enviou-vos a mim aquela senhora? Senta-vos, até eu terminar o meu negócio.

O saniâsin pensou: "Que me acontecerá aqui?", e sentou-se.

O negociante continuou o seu mister, e depois que o terminou, recolheu o dinheiro ganho e disse ao saniâsin:

- Vinde, senhor, vinde à minha casa.

Chegados ali, o vyadha deu-lhe uma cadeira, dizendo:

- Esperai aqui.

E entrou na casa, onde deu banho no pai e na mãe, alimentou-os e fez tudo quanto pôde para agradá-los. Depois, veio ter com o saniâsin, e lhe disse:

- Agora, senhor, viestes ver-me; em que vos posso ser útil?

O saniâsin fez-lhe algumas perguntas relativas à alma e a Deus. O vyadha lhe fez uma preleção que faz parte do Mahabharata e contém um dos mais elevados pensamentos de Vedanta.

Quando o vyadha terminou seu ensinamento, o saniâsin se sentiu estupefato e disse:

- Por que estais nesse corpo? Com um conhecimento como o que tendes, por que estais no corpo de um vyadha, fazendo trabalho tão desagradável, tão sujo?

- Meu filho, replicou o vyadha – não há dever desagradável, não há dever impuro. Meu nascimento me colocou sob estas circunstâncias e neste ambiente. Em minha mocidade aprendi o ofício. Sou desapegado e tento cumprir bem o meu dever. O meu dever é o de dono de casa, e assim faço tudo quanto posso para dar felicidade a meu pai e minha mãe. Não conheço vossa Yoga nem me tornei saniâsin, nem saí do mundo para viver na floresta. Apesar de tudo, as coisas que de mim ouvistes e vistes, vieram-me por eu cumprir desapegadamente o dever correspondente à minha posição.


* * *

Há um sábio na Índia, um grande yogue, um dos homens mais maravilhosos que já vi em minha existência. É homem peculiar, não ensina ninguém. Se lhe perguntardes alguma coisa, não responderá. É demasiado para ele assumir a posição de instrutor, e não o fará. Se lhe fizerdes uma pergunta e esperardes durante alguns dias, no curso da conversa ele trará o assunto à tona, e uma luz maravilhosa se projetará no que vos interessa. Disse-me, uma vez, qual era o segredo do trabalho: "Que o fim e os meios se reúnam como uma coisa só".

Quando estiverdes fazendo um trabalho, não penseis em nada estranho a ele. Fazei-o como se faz um culto, o mais alto dos cultos, e devotai-lhe então toda a vossa vida inteira. Na história, o vyadha e a mulher cumpriram o seu dever de todo ânimo e coração e, como resultado, tornaram-se iluminados, o que nos mostra que o cumprimento correto dos deveres de qualquer dos estágios da vida, sem apego aos resultados, leva-nos a mais alta realização da perfeição da alma.

O trabalhador que se apega aos resultados é que resmunga a propósito da natureza do dever que lhe coube. Para o trabalho desapegado todos os deveres são igualmente bons e se tornam instrumentos eficientes com os quais o egoísmo e a sensualidade podem ser mortos e a liberdade da alma assegurada. Todos temos tendência para pensar muitíssimo bem de nós mesmos. Nossos deveres são determinados pelos nossos merecimentos, em extensão muito maior do que gostaríamos de supor.

A competição desperta inveja, e mata a bondade do coração. Para o resmungão, todos os deveres são desagradáveis, nada o satisfaz e toda a sua existência está voltada ao insucesso. Trabalhemos, fazendo, em nosso caminho, o que quer que seja de nosso dever, e mostrando-nos sempre prontos a pôr nossas mãos à obra. Então, e seguramente, veremos a Luz!

- Por Swami Vivekananda -


(Texto extraído do livro "Karma Yoga"; Ed. Pensamento)

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