A difícil tarefa de fazer um Buda dar risadas

As bandeirinhas coloridas contrastam com o céu azul da praça do "Buda que tudo vê". Depois de vinte minutos de caminhada do centro de Katmandu até ali, Auri (minha esposa) e eu chegamos no topo do monte, onde o famoso templo dos olhos do Buda que tudo vê observa a cidade lá embaixo, todos os peregrinos, devotos e turistas que vão até ali orar ou apenas tirar umas fotos do templo do mestre da paz.

Algumas pessoas cantam mantras perto das estátuas dos mil e um bodhisattvas (1), e eu escolhi um deles para lhe contar uma piada.

Não estou sendo sarcástico nem brincando com coisa séria, é que o olhar sereno da estátua me deu tanta paz e calma, que decidi lhe retribuir o favor e fazê-lo dar risada. Troca justa, afinal não é sempre que você chega num lugar e é envolvido por uma aura de tranqüilidade que lhe dá uma clareza mental tão intensa que você começa a lembrar-se até da data em que se casou.

Não sou budista, mas é inegável que ali sinto uma sensação tão boa que parece que posso abraçar o mundo e tocar cada coração.

O templo famoso e cartão postal do Nepal parece tocar o céu azul, e os olhos do Buda que tudo vê olham de um jeito que você precisa passar a mão no corpo para ter certeza de que não está pelado ali na praça cheia de monges, turistas e macacos.

Fiquei muito contente de poder estar ali e experimentar algo tão bom, e como não sei os rituais de agradecimento budista, escolhi um bodhisattva e tentei retribuir o que senti.

Dirigi-me a ele com alegria:

"Amigo Budinha. Não sei como lhe agradecer, e como sei que você deve estar aí há séculos sem nenhum momento de lazer, vou contar-lhe uma piada."

Então, comecei a minha jornada em busca da risada do Buda. Tentei contar a do papagaio, a da loira, a do português, e confesso envergonhado que até contei algumas piadas bem sacanas e pesadas; mas nada do Buda reagir, pelo contrário, ele permanecia ali inalterado, com aquele meio-sorriso de quem está morrendo de vontade de rir, mas fica sério, ainda mais com tanta gente passando por ali e encostando a cabeça nos seus pés e jogando arroz na sua cara.

Quando pensei em lhe contar a piada infalível do gaguinho e do pássaro graúna, pérola memorável que o meu amigo Cláudio me contou aos 10 anos, e até hoje não consigo evitar o riso ao relembrá-la, passa um grupo de monges-criancinhas que saúdam o Buda e trocam murmúrios entre si, provavelmente tentando entender o que aquele marmanjo está fazendo ali rindo sozinho das suas próprias piadas em frente do Mestre. Então, percebo o ridículo do que estou fazendo e imagino que o Bodhisattva já deve estar perdendo a paciência e explodindo em mil pedaços, sem querer mais ajudar a humanidade. Peço desculpas ao meu amigo, olho fixo em seus olhos e lhe digo:

"Obrigado, amigão, por não desistir da gente. Desculpa aí as piadas, não sou muito bom nisso. Mas não leva a mal não, mas será que posso lhe pedir um favor?"

Não houve resposta, mas depois de tanto tempo ao seu lado, senti que já éramos íntimos o suficiente para uma conversa franca, e quem sabe pedir uma ajudinha.

Disse-lhe novamente:

"Não tem como você da uma ajudinha? Não tem nenhum jeito de ir mais rápido? Quero dizer, estou meditando há anos, faço mantras todos os dias, e até agora nenhum mini-samadhinho (2); não tem por aí um expresso Nirvana? (3)"

Ele continuou imóvel, mas senti que sua fisionomia tinha mudado um pouco, o olhar sereno tinha mudado para um tipo de olhar que só posso traduzir como o olhar de quem faz forca para não dar risada. Mas não teve jeito, e a estátua era mais resistente do que eu pensava, acabei desistindo e decidi ir embora antes que aquelas nuvens que tapavam o céu azul virasse uma enxurrada na cabeça. Porém antes de ir embora, dei uma ultima olhadinha para o meu amigo, e "o Buda que tudo vê" não me deixa mentir, mas posso jurar que enquanto eu olhava para o céu o bodhisattva deu risada.

Não tenho com provar, mas aquele sorriso tinha mudado com certeza. Não era mais meio-sorriso, e sim o sorriso franco de quem deu uma boa gargalhada.

Se algum dia desses eu voltar por aqui, não vou me surpreender se no lugar do Buda do meio-sorriso encontrar o Buda da eterna risada.

SOMOS TODOS UM SÓ!

- Frank -
Nepal, 12 de agosto de 2003.

Notas: Frank é o pseudônimo do nosso amigo Francisco, participante do grupo de estudos do IPPB e da lista Voadores, que atualmente mora em Londres. Ele escreve textos muito inspirados e nos autorizou a postagem desses escritos. Há diversos textos dele postados em sua coluna da revista on line de nosso site, e em nossa seção de textos projetivos e espiritualistas em meio aos diversos textos já enviados anteriormente.

Atualmente ele se encontra em viagem pela Índia e pelo Nepal, e de lá envia os seus relatos e textos compartilhando suas vivências e observações.

– Notas do sânscrito:
1. Bodhisattvas: São aqueles seres bondosos que estão perto de tornarem-se Budas (Iluminados). Para facilitar a explicação, podemos dizer que eles são canais espirituais (avatares) conscientes do amor de todos os Budas.
2. Samadhi: Expansão da consciência, Consciência cósmica.
3. Nirvana: No contexto budista é o estado de bem-aventurança daquele que alcançou a iluminação e mergulhou na consciência cósmica, fundindo-se ao Todo.

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